Brasil: triste país de Lima Barreto

O Brasil ainda é, Lima, uma “vasta comilança.” O Brasil de Lima Barreto é o Brasil hoje. Nele, nós, o povo, “não valemos nada”. Este ano, fundamental em nossa história, […]



O Brasil ainda é, Lima, uma “vasta comilança.” O Brasil de Lima Barreto é o Brasil hoje. Nele, nós, o povo, “não valemos nada”.

Este ano, fundamental em nossa história, é o bicentenário da Independência do Brasil e os cem anos da Semana de Arte Moderna. Nesses eventos, história política e artes se entrelaçam entre o fato histórico decisivo para modificar rumos administrativos do Brasil e as construções artísticas de vanguarda que chocaram a visão de arte da elite brasileira, em especial, a paulistana. 2022 é também ano de eleições e o ano do centenário de morte do escritor e jornalista carioca Afonso Henriques de Lima Barreto, importante crítico dos costumes e intérprete da política brasileira, cuja obra, por muito tempo, fora vista como panfletária, desimportante, especialmente porque já nascera atenta a históricos entraves sociais do país, por muitos ofuscados e por ele experimentados e evidenciados. À propósito disto, por exemplo, Lima Barreto descrevia assim o Rio de Janeiro: “Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos…”

Hoje, sua biografia, suas obras e críticas sobre o prosador são facilmente encontradas em livrarias, bibliotecas, universidades e na internet, e já o percebem como um dos mais importantes escritores do Brasil. Por aqui, no caminho de quem também reconhece Lima Barreto como grande e essencial escritor, sem cometer anacronismos, o que me interessa mesmo é destacar seu brilhantismo, quando da edificação de contundentes olhares sobre o país, facilmente contextualizados na contemporaneidade, de denúncias contra o persistente racismo, sobre a corrupção enraizada na política e o machismo dilacerador de vidas. Ao que parece, o país de Lima Barreto, preconceituoso, medíocre, maledicente e corrupto, continua o mesmo, cem anos depois da morte do “romancista da primeira república”. Na crônica, “Bota-fogo e os pró-homens”, o autor ironiza: “Querem saber de uma cousa? No Brasil, tudo é possível. Quando a vaidade toca os nossos homens de governo, eles estão dispostos a fazer as maiores tolices.”

Suas obras são metáforas da própria vida. Nasceram das experiências de quem era negro, arrimo de família, alcoólatra e vivia, por tudo isso, dilemas domésticos e sociais. Era sua produção uma literatura em trânsito, produto de uma observação atenta de um escritor engajado, que via na escravidão o problema essencial do Brasil. Em Recordação do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto faz críticas categóricas à imprensa carioca e denuncia o racismo em uma país que teimava em obscurecer a discussão sobre esse assunto.  Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, seu romance mais conhecido, entre outros assuntos do texto, o autor elabora críticas aos idealismos e aos heróis mal escolhidos pelos brasileiros, fruto de um patriotismo exacerbado e contestável, nascido de idealizações romanceadas. Hoje, também, muitos do país continuam indiferentes ao racismo que ainda escraviza milhões de negros e negras brasileiras. Além disso, as idealizações por aqui, nascem da construção mítica de ‘heróis” de origem duvidosa, sem muitos traços que honrem a alcunha. É o heroísmo ao avesso, que tem conseguido aviltar a política em todas as suas instâncias e, cada vez mais, consegue afastar dela pessoas realmente capacitadas.

Os romances, as crônicas, as cartas, todos os textos de Lima Barreto foram tecidos no comecinho do século XX. No Brasil que há pouco libertara os negros da escravidão, Lima Barreto escrevia verdadeiras denúncias das sequelas dos três séculos de escravidão e denunciava o persistente branqueamento do país, um dos elementos responsáveis pelo racismo enraizado na sociedade contemporânea e pelo olhar artificial e externo à própria cultura que tipifica o povo brasileiro. Sem defender o feminismo, porque entendia que ele havia abandonado as causas das trabalhadoras, denunciava as mortes de mulheres – o que hoje chamamos de feminicídio. Em muitos dos seus textos, Lima, por meio de uma linguagem incisiva e, não raras vezes, agressiva, denunciou as falhas da República recém fundada. Foi combativo, transgressor, uma voz solitária numa república que já nascera incompleta. Para o autor, “A República no Brasil é o regime da corrução. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a ‘verba secreta’, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência.” Qualquer semelhança com o país do eterno “centrão”, do “petrolão”, do “lavajatismo”, do “vazajatismo”, das “rachadinhas”, das escolhas duvidosas de ministros, das ações equivocadas de policias, juízes, ex-juízes… Não será mera coincidência. No Brasil de Lima Barreto, no Brasil de hoje, é comum “a nojenta feição de homens públicos de todas as matizes”, que se apropriam da condição de público adotada pelos brasileiros e chafurda na coisa pública, lambuzando-se do poder que ela oferece. Por aqui, “ninguém quer discutir; ninguém quer agitar ideias; ninguém quer dar a emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem ‘comer’.‘Comem’ os juristas, ‘comem’ os filósofos, ‘comem’ os médicos, ‘comem’ os advogados, ‘comem’ os poetas, ‘comem’ os romancistas, ‘comem’ os engenheiros, ‘comem’ os jornalistas: o Brasil é uma vasta ‘comilança’. O Brasil ainda é, Lima, uma “vasta comilança.” O Brasil de Lima Barreto é o Brasil hoje. Nele, nós, o povo, “não valemos nada”.

A grandeza do romancista não pode ser mensurada por este simples artigo. Apreciar sua obra é fundamental para que ela seja aplaudida por quem tanto foi representado nela, o “público” brasileiro.


Klítia Cimene