“Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem.”

Acompanho o Exame Nacional do Ensino Médio desde sua primeira edição, em 1998, já como professora. O ENEM nasce com o propósito primeiro de avaliar o desempenho do estudante ao […]



Acompanho o Exame Nacional do Ensino Médio desde sua primeira edição, em 1998, já como professora. O ENEM nasce com o propósito primeiro de avaliar o desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica, mas, há alguns anos, já se constitui um conjunto de provas de admissão à educação superior realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), autarquia vinculada ao Ministério da Educação do Brasil. A primeira edição do Enem contou com apenas 63 questões, aplicada em único dia, com quatro horas de duração. O tema da redação dessa edição foi “Viver e aprender”, tendo apenas um fragmento de texto motivador, uma parte da letra da música “O que é o que é”, de Gonzaguinha. Se comparada com o conjunto de provas de hoje, a primeira versão é bem mais simples, porque, a versão atual das provas, além de fornecer diversos textos de apoio (coletânea motivadora), exige dos participantes um texto dissertativo-argumentativo que deve apresentar, obrigatoriamente, uma proposta de intervenção para o problema apresentado e desenvolvido na dissertação. Inscreveram-se para o Enem 1998 apenas 157 mil brasileiros e pouco mais de 115 mil compareceram às provas. Hoje, o Exame Nacional do Ensino Médio está entre os três maiores e democráticos do mundo, aceito, inclusive, no exterior, em países como Portugal e Inglaterra. Essa síntese contextual já se configura excelente argumentação para dimensionar a importância do ENEM para o país.

Todos os anos, dada a dimensão e a importância notória desse exame, os noticiários dão ênfase ao seu processo de elaboração e condução, como também a eventos a ele relativos. O exame nasceu modesto, mas cresceu em todos os aspectos e, sobretudo, tem dado aos brasileiros mais oportunidades de ingresso em Universidades Públicas e Instituições Privadas de Ensino Superior, porque, por meio de políticas públicas como o PROUNI, pode fazer a mais democrática distribuição das vagas. As suas 23 edições contam com muitas falhas técnicas, o que é, de certo modo, natural, ao longo de um processo que vem se estruturando e que teve uma adesão crescente, para não dizer gigantesca, de participantes. Itens já foram questionados, temas de redação considerados irrelevantes, provas já foram roubadas, etc, etc. Este ano, porém, o que se tornou um entrave ao exame foram os escândalos no INEP, que envolveram denúncias de interferências – censura – do Governo na seleção do tema da redação e de itens (questões) das provas, cujos critérios de elaboração historicamente se constroem de modo técnico, condicionados pelos conhecimentos interdisciplinares que compõem o universo estudantil – como devem ser mesmo –  mas que se viram ameaçados pela ideologia infundada de um governo que teima em desrespeitar as ciências e a educação brasileira.

Essa possibilidade motivou a exoneração em massa de funcionários do INEP e polêmicas que tensionaram a comunidade estudantil do Brasil, porque o chefe do poder executivo deste país ainda não aprendeu – nem aprenderá –  que a autonomia de uma política de estado, como é o ENEM, merece respeito. “O ENEM 2021 terá a cara do Governo”. A declaração de |Jair Bolsonaro, vista por muitos como mais que um “mero blefe” de alguém que sobrevive às custas de uma verdadeira cruzada ideológica, produziu insegurança, sobretudo, em estudantes, que já enfrentam a natural tensão do contexto e, exatamente por isso, dispensam qualquer outra tensão externa. Em um país sério, uma declaração como essa, vinda de um presidente, no mínimo, seria investigada. Toda ação verbal, “todo discurso é dotado de intencionalidade – tenta influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe determinadas de suas opiniões”, conforme nos assegura Ingedore Villaça Koch, teórica da linguagem. Ainda segundo a professora, “a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do termo. Nesse caso, a acepção mais ampla da ideologia bolosnarista nega a importância do conhecimento, renega as ciências, as artes, o pluralismo e as leis. Não era de se estranhar, portanto, a gravidade de sua fala. O dito, que ficou pelo não dito, ou que é tomado como uma declaração inocente, foi responsável, sem me alongar na análise de outras áreas, por uma proposta de redação, cujo tema é importante – sem dúvidas – mas que obscureceu problemas sociais graves, a exemplo das crises hídrica, energética, política e econômica nacionais; escândalos de corrupção na política do governo; crise no SUS; e, especialmente, o difícil e criminoso contexto de pandemia que o Brasil ainda enfrenta e seus tristes desdobramentos.

O Enem sofreu alterações, ainda insignificantes e, por muitos, irreconhecíveis. Diante disso, prefiro concordar também com José Américo de Almeida: “Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem.” No mesmo livro em que Koch faz as referências acima, faz outra fundamental para minha argumentação deste artigo: “A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende neutro, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade.” Não é pertinente acreditar em mais um mito, além do já fadado Bolsonaro.


Professora Klítia Cimene