Sindicatos e diferentes organizações argentinas convocaram uma manifestação nesta quarta-feira exigindo a suspensão do “decretaço” imposto pelo governo do ultradireitista Javier Milei na semana passada. A marcha reúne as principais federações trabalhistas do país, como a Confederação Geral do Trabalho (CGT) e a Confederação dos Trabalhadores Argentinos (CTA), além de organizações sociais, políticas e de direitos humanos em frente à sede do Poder Judiciário e da Suprema Corte de Justiça da Argentina, em Buenos Aires.
O protesto ocorre duas semanas após o governo impor um protocolo que restringe o direito de manifestação ao impedir o fechamento de vias públicas e punir os participantes com ações na Justiça e suspensão de benefícios sociais. Em entrevista à TV argentina na noite de terça-feira, Milei repetiu a fala de sua ministra da segurança, Patricia Bullrich, afirmando que “quem faz, paga”. Ele também divulgou uma linha direta para reclamações sobre a marcha, que, segundo o porta-voz da Presidência, Manuel Adorni, já teria recebido 20 mil ligações.
O dirigente do sindicato dos bancários, Sergio Palazzo, denunciou que a polícia está “marcando os manifestantes com tinta” durante o protesto para identificá-los em eventuais processos e ações para retirada de benefícios sociais. O dirigente pediu que Milei agisse de acordo com a “democracia, e não com o autoritarismo”.
— Quero denunciar que os manifestantes estão sendo marcados com tinta — disse Palazzo. — Nos subúrbios eles também fizeram isso enquanto ninguém está fazendo nada.
— Não questionamos a legitimidade do presidente Milei, mas queremos que ele respeite a divisão de poderes. Os trabalhadores precisam defender seus direitos quando há uma inconstitucionalidade — disse aos repórteres Gerardo Martínez, secretário geral do sindicato dos trabalhadores da construção civil.
Houve tumulto durante a dispersão da multidão, na tarde desta quarta-feira, e agentes de segurança entraram em confronto com manifestantes. Seis pessoas foram detidas até o momento e um policial foi atropelado por um ônibus. Um repórter do jornal argentina La Nación foi agredido por um manifestante enquanto cobria o ato.
Diferentes setores se uniram para tentar impedir a implementação do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), publicado no Diário Oficial há uma semana. O texto impõe, de uma só vez, mais de 300 reformas que, entre outras coisas, revogam leis, eliminam dezenas de regulamentações estatais, permitem a privatização de empresas públicas, abrem as portas para operações em dólares e dão início à flexibilização do mercado de trabalho e do sistema de saúde. A decisão, prevista para entrar em vigor esta semana, está sendo contestada nos tribunais e nas ruas.
Os DNU são mecanismos excepcionais que permitem ao Executivo aprovar ou modificar leis para tratar de assuntos urgentes que não podem esperar pelo debate no Congresso. O governo argumentou que a situação do país — com altos níveis de inflação e pobreza — é “muito complicada”, o que justificaria a medida, que não tem precedentes no país devido à sua magnitude. Muitos setores consideram que o presidente está se apropriando de poderes legislativos e questionam a “necessidade e urgência” de alguns pontos do pacote.
Nesta quarta-feira, enquanto a manifestação ainda acontecia em Buenos Aires, o Gabinete da Presidência argentina encaminhou o “decretaço” para apreciação do Congresso.
Possível plebiscito
Embora Milei tenha obtido 56% dos votos no segundo turno das eleições, quando derrotou o peronista Sergio Massa, ele é minoria em ambas as casas do Congresso: na Câmara dos Deputados, a direita radical tem apenas 38 assentos de um total de 257; no Senado, oito de 72. Para conseguir a transformação do país que ele almeja, Milei precisará negociar com outras forças políticas. Seu partido, A Liberdade Avança, está confiante de que ele terá sucesso.
O Congresso pode rejeitar o decretaço com uma maioria de votos em cada Casa. No entanto, se apenas uma delas o aprovar, ele será considerado válido — se não for posto em pauta por nenhuma delas, também passará a valer. Na terça, em uma entrevista à TV argentina, Milei disse que, se o Parlamento vetar o DNU, ele “convocará um plebiscito”. Outra maneira de impedir que o megadecreto seja colocado em prática seria por meio dos tribunais: mais de uma dúzia de queixas já foram apresentadas, de acordo com a agência de notícias Télam.
A marcha desta quarta-feira foi convocada para às 11h, quando os participantes se concentraram na Plaza Lavalle, no centro da capital argentina, de onde partiram uma hora depois em direção ao Palacio de Tribunales, a poucos metros de distância, onde a CGT apresentaria uma ação judicial contra o megadecreto.
— O objetivo é que a DNU não continue funcionando — anunciou Héctor Daer, secretário da CGT, na véspera da marcha.
Paralelamente à estratégia judicial, os sindicatos também realizaram reuniões com deputados e senadores da oposição para ampliar suas posições contra o decreto. As organizações estão “medindo o termômetro”, segundo eles, e definindo suas estratégias com cautela.
As primeiras reações contra o DNU ocorreram depois que Milei leu algumas das medidas em rede nacional há uma semana. Argentinos indignados expressaram sua rejeição batendo panelas e frigideiras em suas varandas em diferentes partes do país, e centenas deles marcharam até os portões do Congresso em Buenos Aires para defender direitos conquistados ao longo de décadas.
Após o recesso de Natal, as manifestações de repúdio foram retomadas. Na terça-feira, somente na cidade de Buenos Aires, houve dois comícios em frente ao Congresso, onde foram ouvidas palavras de ordem como “Acima os direitos, abaixo o decreto!”.
— Estamos no governo há 16 dias, e eles já realizaram três passeatas — criticou Bullrich na terça-feira.
Para o governo, o objetivo das manifestações é “desestabilizá-lo”. A máxima da ministra da Segurança é corroborada pela ministra do Capital Humano, Sandra Pettovello:
— Quem corta não recebe — disse, em referência à punição ao bloqueio de vias com perda dos benefícios sociais.
A manifestação desta quarta foi a primeira convocada pela CGT, principal sindicato do país, sob Milei. Durante o governo de Raúl Alfonsín (1983 – 1989), a federação trabalhista mobilizou 13 greves gerais e obrigaram o então presidente a deixar seu mandato faltando seis meses para o fim. Os sindicatos se reunirão novamente nesta quinta-feira para definir “um plano de luta”. Também está em pauta a possibilidade de uma greve geral de 24 horas.
O Globo (Com El País, La Nación e AFP).