Documentário brasileiro sobre freira torturada na ditadura militar é premiado na Espanha

Um documentário brasileiro sobre madre Maurina, freira presa e torturada na ditadura militar (1964-1985), foi premiado em três categorias no Festival Cinema Independente de Sevilha, na Espanha. Produzido em Ribeirão Preto […]



Um documentário brasileiro sobre madre Maurina, freira presa e torturada na ditadura militar (1964-1985), foi premiado em três categorias no Festival Cinema Independente de Sevilha, na Espanha.

Produzido em Ribeirão Preto (SP), onde a madre atuou a maior parte da vida, o filme “Maurina, o outono que não acabou” conquistou troféus de melhor documentário de longa-metragem, melhor diretor de documentário de longa-metragem e melhor diretor estreante de documentário de longa-metragem sob direção do ribeirão-pretano Gabriel Silva Mendeleh.

“Uma premiação internacional ajuda o filme no Brasil ter mais visibilidade. Até o cinema nacional tem dificuldade. O cinema nacional independente tem uma dificuldade ainda maior e uma premiação internacional abre portas. Foi uma surpresa. Fiquei muito feliz. Acho que cinema é um trabalho coletivo. O papel da direção é olhar e conhecer cada um que trabalha na equipe para fazer com que ela passe o máximo de potencial que tem. É uma premiação do conjunto. É uma equipe que se deu muito bem e trabalhou junto muito bem”, afirma o diretor.

Além do festival na Espanha, o documentário concorre em outros festivais de cinema em Lisboa, e política e direitos humanos nos Estados Unidos. No Brasil, a expectativa é de que a estreia ocorra ainda no primeiro semestre de 2023, tendo Ribeirão Preto como palco da primeira exibição.

Quem foi madre Maurina?

Madre Maurina Borges da Silveira nasceu em Minas Gerais, mas mudou-se para Ribeirão Preto, onde administrou por muitos anos o orfanato Lar Santana, na Vila Tibério.

Ela foi a única religiosa presa e torturada durante o regime militar brasileiro. Em depoimento à Comissão da Verdade em 2014, o irmão dela, frei Manoel Borges da Silveira, chegou a afirmar que ela também foi vítima de assédio sexual e recebeu choque nos seios.

A freira foi acusada de participar do grupo guerrilheiro Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN) e foi presa em 1969 sob acusação de ceder o porão do Lar Santana para membros do grupo fazerem reuniões.

Madre ficou na cadeia de Cravinhos (SP) e também em presídios de São Paulo e Tremembé (SP). Depois, ficou exilada durante nove anos no México e voltou ao Brasil após a anistia. Ela morreu em 2011, aos 84 anos, em um convento de Araraquara (SP). A religiosa estava com Alzheimer.

O documentário

O documentário tem 85 minutos de duração e começou a ser gravado em 2020, mas a produção parou por conta da pandemia e foi retomada em 2021. Mas a ideia surgiu bem antes, em 2017, quando Gabriel visitou a Festa Literária Internacional de Paraty (RJ), a FLIP.

“Fui numa palestra de uma freira escritora que se chama Maria Valéria Rezende. Após a palestra com ela eu fiquei interessado em estudar um pouco mais sobre as freiras no Brasil, porque eu vi que elas tiveram um papel ativo em vários movimentos sociais, sabe? Então eu comecei a estudar um pouco das freiras pelo mundo e depois me foquei nas feiras no Brasil com essa ideia de querer fazer um documentário sobre alguma feira. E aí eu comecei a pesquisar e descobri a história da Madre Maurina, de Ribeirão Preto, da minha cidade, e que pouca gente conhecia”, conta.

O filme, que tem cenas no Lar Santana e na Biblioteca Sinhá Junqueira, em Ribeirão Preto, além do antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em São Paulo, onde hoje é o Memorial da Resistência, traz depoimentos de religiosos que conviveram com madre Maurina, além de amigos, ex-políticos, historiadores e jornalistas.

Uma carta escrita por ela no México dá o tom da narrativa, que também usa de reportagens da época, animações e reconstituições com atores para contar a história da religiosa. Ninguém da família da freira quis falar, segundo o diretor, mas muitos ajudaram com materiais que enriquecem a produção.

“A gente conversou com o filho do irmão dela. Ele não quis dar entrevista, mas deu uma fita gravada. A madre teve Alzheimer. Quando o irmão dela, o Manoel, que também era religioso e escreveu até um livro junto com o jornalista Saulo Gomes, viu que o Alzheimer estava chegando, eles gravaram uma fita de ela contando as coisas que aconteceram. Os trechos dessa fita estão no documentário. A gente usa também algumas imagens de ela chegando no México, a gente usa algumas imagens dela no México, uma imagem de ela tocando violão quando os irmãos foram visita-la e temos imagens dela voltando para o Brasil. A imagem é quando a prisão preventiva dela é tirada e ela pode voltar para o Brasil para ser julgada”.

Assunto ainda é tabu

Segundo o diretor do documentário, falar sobre ditadura militar no Brasil ainda é polêmico. O assunto, para ele, ainda é considerado um tabu para a sociedade.

Gabriel afirma que encontrou diversas dificuldades na pesquisa para o trabalho, como falta de documentação da época, imagens de arquivos e reportagens por conta da censura e sumiço de importantes obras dos arquivos oficiais.

“Outra dificuldade foi em relação aos personagens. Muitas pessoas se recusaram a dar entrevista com medo de alguma represália, porque o assunto ainda é um tabu. As pessoas têm medo. Muitos não quiseram falar, não quiseram se expor. Na Vila Tibério, vizinhança do Lar Santana, é bairro antigo, bastante morador que conheceu o Lar quando a madre era diretora de lá, mas quando a gente ia, tentava conversar com eles para ver alguém dava declarações ao documentário, eles ficavam arredios. Quando falava que era do Lar Santana trazia o saudosismo, mas quando tocava no assunto madre Maurina eles se fechavam”.

O diretor ainda fala que a proposta do documentário, além de contar a história da madre, é abrir espaço para que temas relacionados a ela fossem devidamente explicados à população, pois, de acordo com ele, muitos fatos considerados falsos foram atribuídos à freira.

“O documentário vem aclarar um pouco. Muita coisa não dá para bater o martelo e afirmar porque a madre não está mais viva, não tem documento oficial que comprove, mas através dos depoimentos das pessoas, advogado dela, pessoas presas com ela, religiosos que conheceram ela, a gente mostra ali o que pode ter uma carga mais de verdade nessas histórias e o que são histórias inventadas”.

Ainda segundo o diretor, retratar histórias do período da ditadura no Brasil ajuda a fazer com que as pessoas tenham a dimensão dos fatos que ocorreram à época com quem era contrário ao governo.

“Eu acho que o documentário carrega muita coisa. Uma necessidade que a gente, quanto brasileiro, de conhecer a nossa história, necessidade de a gente não deixar que o que aconteceu na ditadura seja apagado, porque eu acho que muito dessas manifestações a favor da ditadura militar hoje são porque a história sobre a ditadura militar não é contada, é escondida. Você vai para países aqui da América do sul que tiveram ditadura também você vê inúmeros memoriais, homenagens em praça e aqui no Brasil não. O documentário traz uma carga emocional de pessoas que lutaram, tiveram papel importantíssimo na nossa história, lutaram por um Brasil que elas acreditavam, sem uma censura, que hoje em dia pouca gente conhece. O documentário traz um pouquinho da história das vidas dela e a madre centraliza tudo. Todos falam da madre com brilho no olhar”.

G1