Nos “Passeios de Carroça”, a sociedade patoense troteia na tradição e tropeça na indiferença ao sofrimento animal

Cenário que vemos nas periferias das grandes cidades e em municípios do interior não é o de um resgate cultural digno, mas o de uma prática que ignora a dor animal



Imagem: Divulgação
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Nesta quarta-feira (18), Patos realiza a 19ª edição do Passeio de Carroças, parte da programação oficial do São João da cidade. Apresentado como uma celebração cultural e um resgate das raízes nordestinas, o evento promove a estética das carroças enfeitadas, trajes típicos e o suposto encanto de um passado do Sertão.

No entanto, por trás da fachada festiva, o passeio escancara uma contradição incômoda: ao exaltar a tradição das carroças, acaba por normalizar — e, pior, romantizar — o uso de jumentos e cavalos como veículos de tração animal. Ainda que poucos (?) animais sejam utilizados no cortejo, a mensagem é inequívoca: essa prática, já ultrapassada e eticamente insustentável, continua sendo legitimada sob o pretexto dos costumes. Um retrocesso disfarçado de cultura.

“No sertão, quem é mais útil: o jumento ou o doutor?” — questiona Elino Julião em “Apologia ao Jumento”, exaltando o valor histórico desse animal símbolo da resistência nordestina. Mas se antes o jumento, o cavalo ou o burro eram essenciais para o transporte e o trabalho rural, hoje sua presença à frente de carroças nas cidades brasileiras já não carrega glória, mas dor, maus-tratos e atraso.

Por séculos, o uso de animais como força motriz foi naturalizado. Eles puxaram as riquezas de impérios, ajudaram a povoar territórios e foram sustentáculo de comunidades inteiras. No Nordeste, os carroceiros e seus companheiros de quatro patas se tornaram personagens típicos, quase folclóricos, inseridos no imaginário cultural da região. A imagem do jumento puxando carroças em meio à caatinga ou ao calor do asfalto, ainda resiste — mas a que custo?

O cenário que vemos nas periferias das grandes cidades e em municípios do interior não é o de um resgate cultural digno, mas o de uma prática que ignora o sofrimento animal. Cavalos subnutridos, com feridas abertas, exaustos após jornadas longas sob o sol escaldante, tropeçando em ruas asfaltadas e disputando espaço com ônibus e motocicletas — é essa a realidade das carroças urbanas no Brasil de 2025. Uma realidade que não se sustenta à luz dos debates contemporâneos sobre direitos dos animais e responsabilidade social.

Lei que quebra os cangalhos 

Nesse contexto, o Projeto de Lei 176/2023 surge como resposta legislativa e ética à urgência de mudança. A proposta, em tramitação no Congresso Nacional, visa proibir o uso de animais em veículos de tração em todo o território brasileiro, reconhecendo que essa prática não apenas compromete o bem-estar dos equinos, mas também expõe carroceiros a riscos e marginalização.

O texto prevê ainda medidas de transição justa, como capacitação e apoio para que trabalhadores migrem para alternativas sustentáveis, como veículos elétricos de pequeno porte.

Críticos do projeto evocam o argumento da tradição: a carroça seria patrimônio cultural, e seu fim representaria o apagamento de uma identidade nordestina. Mas tradição alguma pode justificar sofrimento contínuo. Evoluir, afinal, não é apagar a história — é reinterpretá-la à luz da ética e da empatia.

A discussão não deve ser apenas sobre leis, mas sobre mentalidade. O modo como tratamos os animais diz muito sobre quem somos enquanto sociedade. Permanecer indiferente ao sofrimento dos equinos nas ruas é escolher ignorar um problema que clama por solução. Se um dia os jumentos e cavalos foram heróis silenciosos do progresso, hoje são vítimas da nossa omissão.

Que a pergunta lançada por Elino Julião, décadas atrás, sirva de provocação não para enaltecer a submissão dos animais, mas para questionarmos nossas próprias prioridades: no sertão, na cidade, no país — quem de fato ainda precisa ser civilizado?