A parte que me falta – contada por Jacques Lacan

Muitos leitores já devem conhecer o livro “A parte que me falta”, de Shel Silverstein. Uma bela história alegórica sobre não precisarmos preencher nossos vazios com partes que não nos […]



Muitos leitores já devem conhecer o livro “A parte que me falta”, de Shel Silverstein. Uma bela história alegórica sobre não precisarmos preencher nossos vazios com partes que não nos pertencem. A trama apresenta uma esfera com uma parte faltante, que sai pelo mundo buscando sua completude. Ao longo da jornada, vive aventuras, conhece outros seres e constrói um caminho cheio de significado. Até que encontra a peça que a completa perfeitamente. Só então percebe que, ao girar rápido demais, já não consegue mais aproveitar as belezas e amizades que antes tanto lhe alegravam. A esfera descobre que era mais feliz enquanto buscava, enquanto lhe faltava algo.

Ao refletir sobre essa história, não pude deixar de lembrar do conceito de sujeito em Jacques Lacan. Para Lacan, o sujeito não é uno e completo em si mesmo. Ele é construído por eventos, vivências, grupos sociais, significantes. É, essencialmente, faltante: a falta é o motor do desejo. Nosso vazio, essa sensação constante de incompletude, é o que nos move. E, muitas vezes, ao conquistar aquilo que achávamos nos faltar, o vazio permanece — como na história da esfera.

Lacan se opôs ao pensamento psiquiátrico dominante de sua época, que via o sujeito como um ser completo e estático. Para ele, somos “faltantes”, “desejantes”, moldados pela linguagem, forjados pela instabilidade e pelas infinitas possibilidades de ser. A normalidade, para Lacan, não existe — é apenas uma construção social que tenta catalogar e limitar aquilo que, por natureza, é imprevisível e plural: a existência humana.

Assim como a esfera de Silverstein, Lacan nos ensina que viver é aceitar a incompletude, a instabilidade, a abertura ao novo. Que a vida acontece no movimento, no desejo, na conexão, não na perfeição ou em padrões impostos. A completude não está em ser perfeito, mas em se permitir ser — em experiências, em encontros, em humanidade.

O normal é só uma categoria. A verdadeira completude está naquilo que te faz sentir vivo.

Por Gusavo Firmino – Psicólogo