No dia 13 de janeiro de 1825, no largo do Forte das Cinco Pontas, em Recife, foi fuzilado Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, ou também chamado Frei Caneca, um dos líderes e principal intelectual do movimento nordestino denominado Confederação do Equador (1824).
Dois séculos após sua execução por ordem de Dom Pedro I, importa destacar alguns pontos da história e memória desse mártir nordestino e dos processos revolucionários que ocorreram nessa região do Brasil. Para além de inúmeras ruas nas cidades brasileiras, num total de 70 municípios, com o nome do frade revolucionário, faz-se necessário observar a sua história à luz das construções nordestinas, uma vez que a historiografia a partir do Rio de Janeiro sempre ocultou a importância de Frei Caneca para a liberdade e democracia no Brasil.
Nascido em bairro pobre do Recife, em 1779, Joaquim da Silva Rabelo era filho do português Domingos da Silva Rabelo com a brasileira, descendente de portugueses, Francisca Maria Alexandrina de Siqueira. O ruivo Frei Caneca adentra o Seminário do Carmo, no Recife, ordenando-se em 1801, aos 22 anos.
A ideias iluministas e republicanas já chegavam às Américas em fins do Século XVIII, com a Independência dos Estados Unidos da Inglaterra, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1789. Aos poucos os livros e as notícias de revoltas por direitos tomaram não só a Europa, como as colônias da modernidade periférica, especialmente às américas. No Brasil são exemplos as Conjurações em Minas Gerais, em 1789, Rio de Janeiro, em 1794, e na Bahia, em 1798, além de outros movimentos na Colônia Portuguesa.
Com a tomada do poder por Napoleão Bonaparte na França, de 1799 a 1815, a Europa sofre forte abalo em suas relações políticas, implicando diretamente nos destinos da América. Com a revolução haitiana, em 1801, o medo da revolta dos negros no continente abriu mais espaço para as ideias republicanas e de direitos, eclodindo os movimentos de independência da região do Río de la Plata, pela Argentina, com San Martín, e da Gran Colombia, com Simón Bolívar, principalmente por causa da queda do Rei da Espanha com a expansão de Napoleão. A vinda da família real portuguesa, em 1808, e as notícias dos movimentos revolucionários na América Espanhola, fez eclodir, em 1817, a Revolução Pernambucana, que a partir da província de Pernambuco, estendeu-se às províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Durante cerca de 70 dias os republicanos tomaram o poder e instituíram uma carta de direitos, constituindo a primeira república em solo brasileiro. A Corte Portuguesa reprimiu violentamente a Revolução de 1817, executando vários líderes e encarcerando, na Bahia, outros participantes, entre eles, Frei Caneca.
Com a revolução constitucionalista no Porto, Portugal, em 1820, a Corte Portuguesa anistiou os revolucionários em 1821, que retornaram ao Recife, sem abandonar suas ideias republicanas de liberdade. Frei Caneca já era exímio estudioso e professor, organizou com outros uma pequena universidade nos quatro anos de cárcere em Salvador. Lemos Brito (1937) afirmou que “o curioso é o complexo papel que Frei Caneca ali desempenha. Ele é, ao mesmo tempo, gramático, poeta. Na escuridão do cárcere, elabora um breve compendio de gramatica portuguesa, leciona, faz versos”.
Retornando às terras pernambucanas, Frei Caneca publica no início de 1822 Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, onde apresenta seus conceitos de patriota e da diferença dada pela Corte aos cidadãos portugueses e aos nascidos no Brasil. Até 1824, Frei Caneca apresenta-se como intelectual, publicando vários textos sobre republicanismo, liberalismo, bases de uma constituição e críticas ao autoritarismo despótico de Dom Pedro I. De dezembro de 1823 a agosto de 1824 foi o responsável pelo jornal Typhis Pernambucano que circulou no Recife e Rio de Janeiro, principalmente. Frei Caneca dominava a filosofia política da época e seus escritos possuíam influência de Montesquieu e Rousseau. Com a declaração da Confederação do Equador, em julho de 1824, foi um dos responsáveis pela formação política do governo liderado por Manuel de Carvalho Paes de Andrade.
Em julho de 1822, Dom Pedro I sentindo a ameaça republicana na Europa e em todo continente Americano, convoca uma constituinte para discutir uma constituição para o Brasil e esfriar os ânimos revolucionários, especialmente os de 1817, que buscavam a independência do Brasil e a formação de uma república com liberdades e direitos. Evaldo Cabral de Mello (2014, p. 39) observa que “mais do que a república, a independência foi o verdadeiro motor de Dezessete, e sob este aspecto ele também se incompatibilizou com a aspiração de constitucionalizar o Império luso-brasileiro”. Importa destacar que a constituinte foi convocada antes da declaração de independência de 07 de setembro de 1822.
Os focos republicanos em todo recém-Império brasileiro e o movimento de Goiana, em Pernambuco, em 1821, com participação intensa de revolucionários de 1817, fizeram com que em novembro de 1823, Dom Pedro I dissolvesse, por meio da força, a Constituinte, no evento conhecido como Noite da Agonia. Indignados com as narrativas dos constituintes do Nordeste (representantes de Pernambuco, Paraíba e Ceará, principalmente) os revolucionários não aceitaram a intervenção do Império na província de Pernambuco, que estava sob o comando de Paes de Andrade. Em janeiro de 1824, a Câmara da Vila de Campo Maior, atual município de Quixeramobim, no Ceará, declarou independência do Império brasileiro, constituindo-se numa república liberal.
Em março de 1824, Dom Pedro I impõe a Constituição Imperial de 1824, com a invenção de um quarto poder, sagrado, que poderia desfazer ou corrigir atos dos outros poderes: o Poder Moderador. Paulo Bonavides (2000, p. 166), exímio constitucionalista patoense, observou que “a nossa primeira Constituição referendava a ditadura constitucionalizada, com a constitucionalização de um quarto Poder Moderador, tendo sido a primeira experiência do mundo das constituições, dessa forma, uma invenção brasileira, observou Bonavides” e também “em sua nascente, o Brasil construiu um constitucionalismo sem povo, sem poder constituinte, sem tradição revolucionária, sem origem numa unidade de pensamento e ação, um poder que já emergiu tolhido, preso à vontade suprema e inarredável de um príncipe” (Bonavides, 2009, p. 26). O constitucionalismo brasileiro nasce autoritário, sem povo, sem direitos, sem garantias e sem liberdades.
A dissolução da Constituinte, a imposição da Constituição em 1824 e a ordem de intervenção na província de Pernambuco, com o bloqueio do Porto do Recife, e as notícias de possível investida de Portugal contra o Brasil, tornou os ânimos insustentáveis. Em 02 de julho de 1824, a Confederação do Equador é proclamada por Manuel de Carvalho Paes de Andrade. Posteriormente, escreveu Frei Caneca (Mello, 2024) que “se o Rio fizer conosco, o que Deus não permita, o mesmo que Portugal fez com o Brasil”, já que os pernambucanos “não tendo nascido para escravos, jamais nos sujeitaríamos ao despotismo ministerial, qualquer que ele fosse e pudesse reviver”. Com a adesão da Paraíba, Rio Grande do Norte e do Ceará, a confederação durou até setembro de 1824, quando as forças monárquicas ocuparam o Recife.
Com a ocupação das tropas imperiais no Recife e a fuga de Manuel de Carvalho Paes de Andrade para a Europa, parte dos revolucionários foram rumo a Goiana, decidindo, posteriormente, percorrer o interior das províncias até a província do Ceará, onde encontrariam as tropas do Comandante Filgueiras, que juntamente com Tristão Gonçalves de Araripe e José Martiniano de Alencar proclamaram a adesão desta província à Confederação. Essa travessia durou 80 dias e passou por cidades como Limoeiro (PE), Cabaceiras, São João do Cariri e Pedra Lavrada (PB), Jardim do Seridó, Caicó e Pau dos Ferros (RN) e Umari e Lavras da Mangabeira (CE). Teve apoio militar da Vila de Areia, na Paraíba, e travou vários conflitos com tropas imperiais, demonstrando o aspecto interiorano das províncias nordestinas por onde passou os confederados, que em sua maioria estava alheia às movimentações políticas das capitais, possuindo alguns elementos religiosos ou intelectuais liberais e outros monárquicos, mas em sua grande maioria, a população não acompanhava as disputas ideológicas políticas.
Uma caminhada detalhada em diário por Frei Caneca, que inicia em 16 de setembro e termina em 29 de novembro de 1824, na Vila das Lavras, Ceará, onde são presos Frei Caneca, Félix Antônio, presidente interino da Paraíba, o Capitão França, Carneiro, Ildefonso, Rangel, Agostinho Bezerra, Frei Antonio Joaquim das Mercês, Veras, Vieirinha, Emiliano, major José Alves, capitão Taveira Canelludo, tenente José Gonçalves e Frei João (Mello, 2024, p. 680). Estes presos seguem escoltados com destino ao Recife, passando pelas cidades paraibanas de São João do Rio do Peixe, Sousa, Pombal, Fazenda Macapá (Malta), Fazenda Santa Gertrudes, Patos, Passagem e Campina Grande. Em seu diário narra Frei Caneca a admiração por este trajeto e as belezas da Serra da Borborema. O major Lamenha Lins, responsável pela capitulação do movimento, convenceu os revolucionários a se entregarem e voltarem ao Recife, onde esperavam o perdão de Dom Pedro I, por uma pena não capital.
No dia 20 de dezembro de 1824, no Recife, reuniu-se a Comissão Militar para julgar Frei Caneca e outros revolucionários. O processo findou-se no dia 23 de dezembro, do mesmo ano, com a publicação da sentença por pena capital do frade, praticamente ignorando sua defesa apresentada por escrito no curto prazo de horas. A Comissão Militar, e não jurídica, foi instituída por Dom Pedro I em 26 de julho de 1824, com ordens expressas de pena de morte. O decreto de julho suspendia os direitos fundamentais da recém-Constituição do Império, que previa no artigo 179 os direitos que toda pessoa presa tinha para acusações e defesas na nova ordem constitucional. O ódio de Dom Pedro I contra Frei Caneca era superior aos preceitos constitucionais recentemente inventados. Inclusive, o Império brasileiro não tinha ainda um código penal, que somente surgiria em 1830, sendo a pena de morte fundamentada no livro das ordenações portuguesas.
Em janeiro de 1825, é lida a sentença ao frade pernambucano que nas palavras de Lemos Brito (1937) “o sacerdote põe-se de pé, ansioso, mas sereno. A decisão implacável é recitada de acordo com o ritual da lei. Ela declara culpado do crime de rebelião contra o imperador e de instigação dos povos à desagregação da pátria, com a fundação de um governo autônomo no Norte. A morte será pela força, precedida de degradação canônica”. Em 13 de janeiro, após cortejo para degradação de suas funções religiosas, segue para a forca. Um recluso designado para o enforcamento de Frei Caneca se recusa a realizar o ato. É espancado, mas resiste. A guarda traz algumas pessoas escravizadas que também se negam. A Comissão assim decide pelo fuzilamento. Um dos membros da tropa, antes de atirar contra o frade cai e morre de forma fulminante (Brito, 1937). Frei Caneca foi fuzilado ao lado do Forte das Cinco Pontas, em Recife. “Envolto em simples lençol, atira-se o cadáver defronte ao Convento do Carmo, para onde depois é recolhido e sepultado no pátio interno”, descreve Orlando Parahym (1975, p. 35).
Observa José Murilo de Carvalho (2017, p. 72) que diferentemente de Tiradentes, um político que morreu como religioso, Frei Caneca foi um religioso que morreu como político, defendendo a liberdade em duas revoluções. O apagamento histórico do movimento republicano nordestino é perceptível pela historiografia fluminense. A memória do líder intelectual da Confederação do Equador não pode passar em vão após dois séculos de lutas e construções por liberdades, direitos e bases republicanas, principalmente no momento histórico brasileiro de tentativas de retirada de direitos e tentativas de golpes por meio da força. Frei Caneca e os revolucionários nordestinos buscaram construir uma república no Brasil, em 1817, e, principalmente, a separação da espoliação portuguesa. Depois, em 1824, rebelaram por liberdades, contra o autoritarismo de Dom Pedro I e sua corte monárquica. Não buscavam separar o Nordeste do Brasil, como bem explica Josemir Camilo de Melo (2024), mas espalhar o espirito republicano e liberal por todas as terras brasileiras, em uma Estado constitucional e federado.
Viva a República! Viva Frei Caneca!
Tiago Medeiros Leite
Professor do Curso de Direito da UFCG. Doutor em Ciências Jurídicas pela UFPB. Líder/pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Criminologia e Democracia na América Latina (NECDAL/UFCG/CNPq).
Referências:
BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Revista Estudos Avançados, 14 (40), p. 155-176, 2000. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9553/11122>. Acessado em: 19 dez 2024.
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4º Edição. São Paulo: Malheiros, 2009.
BRITO, Lemos. A gloriosa sotaina do Primeiro Império (Frei Caneca). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
MELLO, Evaldo de Cabral (Org.) Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. 2 ed. Recife: CEPE, 2024.
MELLO, Evaldo de Cabral. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2014.
MELO, Josemir Camilo. Confederação do Equador, 200 anos – Movimento foi ideológico e não separatista. Jornal O Poder. 0+9 e novembro de 2024. Disponível em: https://www.opoder.com.br/noticias/20897/confederacao-do-equador-200-anos-movimento-foi-ideologico-e-nao-separatista-ensaio-por-josemir-camilo-de-melo. Acessado em: 10 dez. 2025.
PARAHYM, Orlando. O Homem. In: PEREA, Romeu (Coord.). Ensaios universitários sobre Frei do Amor Divino (Caneca). Recife: Universidade Federal de Pernambuco – Editora Universitária, 1975.
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