Coisa delicada da nossa vida é a memória. Vez por outra, ela chega galopando no terreno fértil da saudade e, subitamente, me inunda com imagens, sons e cheiros importantes que me arrastam ao pranto. O entardecer sertanejo, ao som do baião, das cantorias; as esperas pela hora do almoço em família, o barulho de casa cheia, de gente e de afetos; o correr da hora entre uma viagem e outra. Tudo, tudo me traz saudade. A vida estava ali. O tempo corria ali. Eu vivia ali. As pessoas construíam suas histórias, eu fazia parte de cada uma delas e todas vibravam em mim. Eu me deliciava com a vida e sua potência encantadora de ser… Porém, quanto mais o tempo passa, mais distante de mim fica o que realizei; mais perto, a certeza da desimportância do estar no mundo e a iminência do adeus derradeiro.
Ainda há pouco, preparando-me para deitar de novo – era tudo que eu fazia de relevante – perguntei a minha filha sobre o dia. Que dia é hoje? Que ano é este? Que horas são estas? “13h, do dia 10 de abril de 2024, pai.” Eu me assombro sempre com o tempo. Ele destrói intensidades. Com a resposta, tive a impressão de que a pergunta era absolutamente irrelevante, porque eu não tinha de sair de casa, não havia compromissos a cumprir, muito menos alguém para receber e partilhar nossas existências. O tempo, que fora, para mim, fugaz, hoje desliza dolorosamente no passar cadenciado das horas.
Enquanto eu refletia sobre a efemeridade das coisas, minha filha saiu, e não percebi. Ela fez questão de sair em silêncio. Tinha muito o que fazer. Passava pouco tempo em casa, trabalhava demais… E fiquei sozinho, ouvindo o triste silêncio da solidão quase absoluta, quebrada pela insistente e dolorosa presença da saudade. Vi no caminhar de minha única filha o que é a vida: água que corre e que se perde nos dedos de quem presume dominá-la; gotas de um orvalho nas tardes do começo do verão. Chorei intensamente. Dei-me conta do pouco que me restou.
Hoje, de um lugar para outro da casa, resumo minha existência às memórias sobre ela. O tempo presente demora, cansa e tem pouco sentido. As notícias não mais me importam; meus amigos, amores… Quase todos se foram. Estão estudando a geologia dos cemitérios, estranha e certa tarefa que aguarda todos nós. Vivo, sobrevivo, do passado, da saudade de quando a vida era muito mais que insônia e barulho dos cascos do galope insistente da memória. Aguardo, a cada dia, ao entardecer, a chegada da filha que perpetua minha trágica herança.
Klítia Cimene
Imagem: pintura de Van Gogh