No dia 11 de outubro de 1923, na pequena cidade de Patos, que contava com uma população de 20 mil pessoas, aproximadamente, uma criança de nome Francisca desapareceu, sendo encontrada morta dias depois, no sítio Trapiá, alguns quilômetros de sua casa. Francisca vivia com o casal Absalão e Domila Emerenciano, ambos de Campina Grande. Absalão veio para Patos cuidar do motor da energia elétrica e mantinha boas relações com os principais nomes da política e do poder na cidade (1).
Conforme se apurou na época, mesmo com todas as limitações de informações, a menina Francisca possuía sete ou oito anos e possivelmente era filha de ciganos, que devido às condições de seca e pobreza da época deixaram essa criança aos cuidados do casal campinense. Tempos difíceis, de extrema pobreza e abandono. Não custa lembrar as históricas secas de 1915, 1918 e 1922, quando incontáveis retirantes (também chamados de flagelados e nos tempos atuais refugiados) perambulavam nos sertões nordestinos em busca de sobrevivência (2). Francisca foi vítima da fome e da miséria, como milhares de crianças foram e morreram pelas estradas secas do Brasil.
A relação de Francisca com o casal não era fácil. Narra a história falada popular que a menina sofria maus-tratos diários. Narram às folhas do Inquérito Policial várias testemunhas que presenciaram a violência e marcas no corpo da pequena. A Senhora Domila Emerenciano explorava a pequena criança em seus afazeres domésticos e castigava brutalmente. Num desses dias, o castigo foi fatal, e a brutalidade selvagem da madrinha tirou a vida da criança Francisca. Conforme apontaram as investigações, Absalão desapareceu com o corpo, que foi encontrado na Caatinga seca de outubro, entre pedras, dias depois. Para a população não restavam dúvidas de quem matou Francisca. O casal foi embora para Campina Grande.
Até 1934 as investigações sobre o caso foram suspensas e ninguém se tornou réu. O Coronelismo e as forças políticas patoenses não permitiram julgamento. Onze anos depois, um Juiz e um Promotor reabriram o caso, a denúncia foi apresentada, o casal passou a ser réu. Um Júri foi convocado para 1934, cinco homens foram jurados, absolvição imediata na primeira pergunta. Recurso aceito, Júri anulado por questões formais, novo Júri marcado no mesmo ano, novamente cinco homens, novamente outra absolvição no primeiro quesito. Recurso aceito, Júri anulado novamente, difícil o Judiciário e a população aceitar tamanha injustiça. 1935, terceiro Júri instalado, cinco homens novamente, mesmo resultado. Nenhuma pena para o bárbaro crime, nenhuma condenação para história de Francisca e da cidade. O machismo e o poder buscavam a todo custo proteger o casal. O Júri não representava a vontade popular.
100 anos depois, hoje, 11 de outubro de 2023, o local onde o corpo foi achado é um parque religioso. Em homenagem a menina Francisca construiu-se uma igreja, à sua memória incontáveis devotos pedem milagres divinos: a Cruz da Menina.
A morte da menina Francisca representa uma história de pobreza e abandono de milhares de sertanejos pelo Estado brasileiro. Francisca sofreu violência social quando foi abandonada por sua família à desgraça de família alheia, mesmo que por motivos necessários. Um século antes não existia legislação nem instituições de proteção à infância. Hoje, as crianças possuem tais direitos e tais instituições. Mesmo assim, elas ainda são brutamente assassinadas, sequestradas e abusadas sexualmente. A morte da menina também denuncia a eterna exploração que a criança e a mulher sofrem no âmbito doméstico, em suas pesadas atividades domésticas e em suas várias violências sofridas, desde físicas às psicológicas. A morte de Francisca denuncia como ela foi e continua vítima da brutalidade humana, individual e social, por meio de instituições que não punem e não protegem, por meio de um Júri que não quis punir. Depois de morta, ainda sofreu Francisca os mandos e desmandos das instituições estatais, como tantas outras Marias e Franciscas.
A morte de Francisca é a memória de um povo sertanejo que busca fazer justiça e contrapor todas essas desigualdades históricas por meio de sua gratidão. Seu martírio traz esperança para aqueles que acreditam na bondade humana sem burocracias. Seu povo a elegeu santa e ninguém apagará isso de sua memória.
- Ver LUCENA, Damião. Patos de todos os tempos: a capital do sertão da Paraíba. João Pessoa: JB, 2022.
- Ver RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.
Tiago Leite é professor da UNIFIP, doutor em Ciências Jurídicas (UFPB) e advogado.
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