“Por amor”: um imoral eufemismo para a subordinação docente

No Brasil, em 14 de outubro de 1963, o então presidente João Goulart, por decreto, instituiu o Dia do Professor. No texto, ordenava-se que “o dia 15 de outubro seria […]



No Brasil, em 14 de outubro de 1963, o então presidente João Goulart, por decreto, instituiu o Dia do Professor. No texto, ordenava-se que “o dia 15 de outubro seria feriado escolar, que o MEC promoveria concursos alusivos à data e ao professor, e que, para comemorar condignamente o dia do professor, os estabelecimentos de ensino promoveriam solenidades, em que se enalteceria a função do mestre na sociedade moderna, fazendo delas participar os alunos e as famílias.” Quase 60 anos depois, o decreto, que já nasceu sem força, ainda se mostra insuficiente. Em muitas escolas brasileiras, nem mesmo por mero cumprimento legal, as solenidades são feitas. E, para além de homenagens, quase sempre hipócritas, ou inexistentes, o fato é que a maioria dos professores brasileiros, cerca de dois milhões, pouco mais de 1% da população, encara média salarial irrisória, carga horária desumana e agressões persistentes – o Brasil é o país mais violento do mundo para professores. Aqui, eles ainda enfrentam doenças como depressão e Síndrome de Burnout, a síndrome do esgotamento físico e mental, consequentes de um cotidiano cheio de desafios e, sobretudo, de desrespeitos.

A escola brasileira, por sua vez, é fruto da ideologia expansionista, catequizadora e, por isso mesmo, opressora e segregadora – por exemplo, somente no final do século XIX, foi permitida a presença de mulheres nas escolas brasileiras. Ela também se apresenta tecnicista e disciplinadora de massas; em muitos aspectos, ineficiente, e mera reprodutora de um sistema que apenas se preocupa em preencher lacunas de mercado, não levando em consideração o fator humano, social e político, no qual a função de educador está enraizada. Nela, o professor tem pouca ou quase nenhuma autonomia; nela, romantiza-se, propositalmente, a profissão e, do professor, exige-se “amor”, um imoral eufemismo para total subordinação aos ditames de diretores, coordenadores, pais e governos que ainda não compreenderam a importância do professor para o substancial desenvolvimento do país. O “amor” unilateral, obviamente, não é capaz de suprir as necessidades diárias do profissional e de sua família. Eles precisam de mais. O professor precisa de aumento salarial que supra suas necessidades e as de sua família; precisa de tempo para estudar, visto que, para ter um salário um pouco mais provedor, trabalha em várias escolas e, por isso, cumpre uma carga horária desumana, repleta de uma burocracia escolar que muito mais atrapalha o desenvolvimento das atividades docentes. Ele também precisa de atitudes resolutivas que o protejam das constantes violências que enfrenta, quer sejam morais, físicas ou patrimoniais. Sua família precisa da presença dele. No universo docente brasileiro, há muito mais o que fazer do que o que aprimorar.

Diante disso, é fácil compreender que, em média, os alunos passam 15 anos de sua existência na escola, junto a professores e professoras e, de lá, muitos estudantes saem sem, ao menos, reconhecerem a importância desses profissionais. Por isso, é perfeitamente compreensível, considerando o cenário nacional sucintamente descrito, o porquê de haver poucos estudantes no Brasil que desejam ser professores. O Brasil é ríspido demais com seus docentes.

Além de tudo isso, o professor ainda convive com outros desafios e exigências: ele tem de ser bom profissional, ensinar, transformar os alunos e fazer parte dessa transformação, mesmo que o reconhecimento seja ínfimo. Ele precisa sobrepujar o tédio, a indisciplina, a irrelevância de algumas informações repassadas, superar o próprio cansaço e não considerar a sala de aula um peso. Sem que seja preterido pelos alunos, nas duas últimas décadas, especialmente, ele precisou lidar com as múltiplas tecnologias, esses instrumentos tão paradoxais, porque, ao mesmo tempo, repletos de superficialidades e de profundezas em níveis distintos e vastos de conhecimentos e banalidades. Em muitos contextos, há uma verdadeira competição entre sala de aula e tecnologias; entre professor e internet. O que deveria ser uma relação de aprendizagem, passa a ser um duelo. Nesse contexto, talvez, o maior desafio seja mesmo este: lidar bem com o aluno real, que sempre integra outra geração e, não raras vezes, julga o professor como se este fosse obsoleto.

Ao que parece, ser professor no Brasil, na maioria das vezes, exige mesmo um exercício diário e legítimo de consciência, resiliência, esperança e luta, porque, por decreto, ninguém escolhe uma profissão; por decreto, ninguém permanece nela; ninguém se alegra com ela; ninguém a valoriza, ninguém se valoriza, ninguém, muito menos o professor brasileiro, é valorizado. Sou professora. Há mais de trinta anos, fiz minha escolha profissional, inspirada na difícil realidade do magistério, mas também na sua inspiradora capacidade de transformação, e no convívio com meus professores e professoras. Até hoje, tenho neles uma referência para o meu exercício docente. Tenho em outros que compõem o ambiente escolar, infelizmente, referências de profissionais que não quero ser. Àqueles e àquelas, que têm na experiência docente um compromisso com seu país, rendo minha gratidão e meu reconhecimento.

Klítia Cimene