Em delação, Cid diz que Bolsonaro consultou militares sobre plano de golpe

Em um dos depoimentos que compõem a delação premiada que fechou com a Polícia Federal, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid relatou que, logo após a derrota no segundo turno […]



Em um dos depoimentos que compõem a delação premiada que fechou com a Polícia Federal, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid relatou que, logo após a derrota no segundo turno da eleição, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu das mãos do assessor Filipe Martins uma minuta de decreto para convocar novas eleições, que incluía a prisão de adversários.

Segundo o relato de Cid, que é tenente-coronel do Exército, Bolsonaro submeteu o teor do documento em conversa com militares de alta patente. O delator disse ainda que o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, manifestou-se favoravelmente ao plano golpista durante as conversas de bastidores, mas não houve adesão do Alto Comando das Forças Armadas.

Esse relato consta em um dos anexos com depoimentos já prestados pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro na delação, de acordo com duas fontes que acompanharam as negociações. Cid contou aos investigadores que testemunhou tanto a reunião em que Martins teria entregue o documento a Bolsonaro quanto a do então presidente com militares.

O capítulo da delação premiada sobre as tratativas golpistas foi o que mais despertou o interesse da Polícia Federal. Por causa dos detalhes inéditos, os investigadores decidiram assinar o acordo de colaboração, que foi conduzido pelo advogado Cezar Bitencourt e homologado no último dia 9 pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.

Uma das suspeitas dos investigadores é que essas articulações resultaram nos atos golpistas do 8 de janeiro.

Cid, que estava preso desde maio após uma operação da PF que tinha como objeto a falsificação de cartões de vacinação, deixou a prisão após a homologação do acordo. Além de contar aos investigadores sobre os planos golpistas, o tenente-coronel apresentou informações sobre outros temas, como o esquema de venda de joias, as fraudes em certificados de vacina e as suspeitas de desvios de recursos públicos do Palácio do Planalto.

Os primeiros depoimentos da delação premiada já foram colhidos pela PF. Agora, os investigadores irão realizar diligências para verificar a veracidade das informações apresentadas e podem chamar Cid para esclarecimentos complementares.

O que Cid contou

O tenente-coronel relatou à PF como uma minuta golpista chegou às mãos de Jair Bolsonaro, após a derrota nas eleições, e os desdobramentos do plano de golpe.

Cid afirmou que Filipe Martins, então assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, levou um advogado constitucionalista para uma reunião com Bolsonaro no fim do ano passado. Um padre também teria participado desse encontro. O tenente-coronel, entretanto, disse não se lembrar dos nomes desses dois personagens.

Nessa reunião, de acordo com o relato do tenente-coronel, o constitucionalista e Filipe Martins apresentaram a Bolsonaro uma minuta de decreto golpista. O documento sugeria a convocação de novas eleições e autorizava o governo a determinar a prisão de adversários.

Bolsonaro recebeu em mãos o documento, mas não externou sua opinião sobre o plano golpista, segundo a delação. A PF investiga se é a mesma minuta golpista encontrada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

O documento apreendido na residência de Anderson Torres em janeiro também autorizava a prisão de adversários, como o decreto golpista entregue por Filipe Martins a Bolsonaro. A minuta golpista de Anderson Torres determinava a decretação de um “estado de defesa” na sede do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) com o objetivo de apurar supostas irregularidades nas eleições, o que poderia resultar na convocação de um novo pleito.

Cid contou aos investigadores que, posteriormente, Bolsonaro teve reuniões com militares de alta patente e mostrou a eles parte do documento para verificar a receptividade à ideia do plano golpista. O único apoiador, de acordo com o relato do delator, foi o comandante da Marinha, almirante Garnier.

O almirante já havia dado demonstração pública contra a posse de Lula, quando se negou a participar de cerimônia de transmissão do cargo ao comandante da Marinha escolhido por Lula, Marcos Sampaio Olsen, em uma quebra de protocolo.

O tenente-coronel relata uma movimentação errática de Bolsonaro a respeito do tema. Apesar de em alguns momentos dar sinais favoráveis a planos golpistas, ele não chegou a autorizar expressamente seus auxiliares a colocar algum plano desses em prática. Os diálogos com os generais não resultaram na execução das intenções golpistas.

Quem é Filipe Martins

Um dos seguidores do ideólogo Olavo de Carvalho (1947-2022), Filipe Martins ocupou a função de assessor especial da Presidência para assuntos internacionais durante a gestão de Jair Bolsonaro.

Martins foi alvo de uma denúncia do Ministério Público Federal por racismo porque, durante uma sessão no Senado transmitida pelas televisões, fez um gesto com as mãos usado pelos movimentos supremacistas brancos dos Estados Unidos. O gesto forma a sigla White Power, ou Poder Branco. A Justiça do Distrito Federal aceitou a denúncia, mas depois absolveu Martins.

Durante as eleições, ele reproduzia nas redes sociais o discurso bolsonarista de colocar em dúvida as urnas eletrônicas, abrindo espaço para contestação do resultado do pleito. Após a derrota no segundo turno, Martins parou de fazer publicações em sua rede social.

Outro lado

Procurada na tarde e noite desta quarta-feira (20) por mensagens e telefonemas, a defesa de Jair Bolsonaro ainda não respondeu sobre o assunto.

Na semana passada, o ex-presidente já havia minimizado eventuais articulações golpistas. Ao colunista Lauro Jardim, do jornal “O Globo”, Bolsonaro afirmou que poderia “discutir qualquer coisa” mas que não haveria crime se não colocasse em prática.

“Eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas se não botar em prática não tem problema”, disse Jair Bolsonaro, em entrevista.

Em declarações à colunista Mônica Bergamo, da “Folha de S.Paulo”, ele negou a intenção de desrespeitar o resultado da eleição.

“Desde que eu assumi, eu fui constantemente acusado de querer dar um golpe, tendo em vista a formação do meu ministério e as minhas posições como parlamentar. Mas vocês não acham uma só situação minha agindo fora das quatro linhas da Constituição. Nenhuma. Não seria depois do segundo turno que eu iria fazer isso. Muito menos no 8/1. Eu já não era mais nada, estava fora do Brasil”.

Jair Bolsonaro, em entrevista.

O ex-assessor Filipe Martins foi procurado por mensagens e contatos telefônicos, mas não respondeu. Questionado sobre o assunto, o seu advogado, João Manssur, disse que não poderia se manifestar por não ter conhecimento do assunto e não estar constituído nos autos.

A reportagem também entrou em contato com um assessor do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, mas não houve resposta até a conclusão desta matéria.


UOL por Aguirre Talento