“O nervoso interior que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquecer-me. Li um conto. Quando iniciei outro surgiu os filho pedindo pão.”
Trecho de “Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus.”
A escrita é um instrumento de resistência. Rompe silêncios oportunistas, castradores, e assim configura-se, sobretudo, quando materializada por quem sobrevive à margem de uma sociedade que subjuga o ser humano, especialmente, mulher, negra e pobre. Sozinha, a palavra não pode mudar o mundo, mas, por vezes, consegue denunciar a fome, a miséria, não somente a física, e todas as desolações consequentes de tudo o que deve ser combatido, visto como normal, pior que isso, aceitável e irremediável.
Carolina Maria de Jesus, a catadora de papel nos despojos humanos, por uma questão de sobrevivência e consciência, catou seu próprio papel na sociedade. Como disse a autora, sobre seus textos, ela escreveu “a miséria e a vida infausta dos favelados.” Era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o seu sonho era escrever e o pobre não podia ter ideal nobre. Ela sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém estava habituado a esse tipo de literatura. Ela escrevia a realidade.
A escritora mineira, que desde pequena experimentou a tontura da fome que a fazia tremer, produziu uma escrita do eu, do eu consciente sobre a vida difícil e de desafios cotidianos. Todos os dias, ela se erguia em busca do pão, do alimento. No lixo, encontrou sua sobrevivência. Do lixo, paradoxalmente, retirou o papel no qual perpetuou sua história, esta que a censura do preconceito insiste em ofuscar. Na maioria dos livros didáticos de literatura brasileira, nenhuma referência é feita à escritora mineira.
Escreveu prosa e verso. “Quarto de despejo”, sua obra mais conhecida, foi traduzida para mais de dez idiomas e vendida em mais de 40 países. Na década de 1960, quando da publicação do livro, a autora tornou-se muito conhecida, mas pouco tempo depois, ela é estranha à parte considerável dos brasileiros e brasileiras.
Com uma imagem determinada e uma força nítida, tornou-se uma referência de mulher negra brasileira. Sua imagem vem construindo-se como um ícone de força, por sua origem e percurso. Por sua grandeza e importância, Carolina Maria de Jesus deve ser lida e viva no cotidiano de seu povo.
Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram livros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.
Carolina Maria de Jesus. Antologia pessoal, p.174.
Klítia Cimene Carneiro de Oliveira
Graduada em Letras e Pós-graduada em Literatura e Linguística
Professora de linguagens