Na França do século XVI, Etienne de La Boétie, em seu “Discurso da Servidão Voluntária”, escreve uma de suas mais importantes teses sobre a relação do ser com o Estado, quando afirma que “é o povo que se escraviza, que se degola, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade”. Nesse texto, La Boétie destaca três razões da servidão voluntária: o hábito, a covardia e a participação na tirania. Para o pensador, somos ensinados a servir. Por hábito, nos escravizamos. Ao passar do tempo, é o costume que nos leva, não somente a engolir “os sapos venenosos da escravidão”, mas, a desejá-los: “pois, por melhor que seja, o natural se perde, se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais.” De se nascer servo e ser criado na servidão, decorre o segundo motor da servidão voluntária: a covardia. Sob a tirania disfarçada, seres acovardam-se, escravizam-se, não “têm ardor nem constância no combate, “não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade.” Na contramão disso, entre os seres livres, estão a discussão e a polêmica. Entretanto, os escravos voluntariosos são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos e, assim, fazem o possível para tornar aqueles sempre mais fracos e covardes, consequentemente, vulneráveis e, aos tiranos, subalternos. A estratégia precípua destes é bestializar seus súditos.
O texto de La Boétie, pensado e produzido em contexto diverso do brasileiro, dado que se materializou na França do século XVI, mais parece um retrato do brasileiro de todos os tempos, do ser humano de todos os contextos, visto que as relações de poder se constituem exatamente dos mecanismos descritos e detalhados na referida obra, e se fortalecem com uma gigantesca presença, ofuscando, muitas vezes, as insurreições responsáveis pela conquista das liberdades. Assim acontece, por exemplo, com as lutas de mulheres no Brasil, mal compreendidas e ainda pouco visibilizadas.
No enfrentamento aos atributos da servidão voluntária, hábito, covardia e participação na tirania, estão mulheres que, sabedoras do valor de serem livres, gradativa e brilhantemente, rompem seus grilhões e têm na liberdade sua própria substância. A duras penas, a servidão vai se descontruindo e cede lugar ao experimento diário da conquista da fala, da escolha, da vida autônoma e empática. A liberdade, esse sonho humano alimentado, mesmo que nem sempre compreendido, como poetizou Cecília Meireles, é sentido e desejado por essas mulheres. Decerto, é esse desejo que alimenta as ações positivas nas vidas de mulheres brasileiras, como Maria da Penha, de cujo sofrimento e coragem emanou a Lei; Carmen Barroso, cientista social e pesquisadora de gênero; Eliane Potiguara, professora e ativista pela causa indígena brasileira; Sueli Carneiro, filósofa e ativista antirracismo e pelo feminismo negro; Conceição Evaristo, professora e escritora negra; e Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro.
Essas e outras brasileiras, ainda desconhecidas de grande parte da sociedade, nos motivam, nos encorajam. Na contramão libertadora do ser, assumem o protagonismo herói de suas vidas e personificam o discurso de Simone de Beauvoir: nada as limita, nada as define, nada as sujeita. A liberdade é, pois, sua própria substância, já que viver é ser livre. Cada uma emerge em um cenário de dificuldades cotidianas, a exemplo do sexismo, nos discursos e nas práticas, e promove a ampliação do conhecimento, da sensibilidade e do respeito, elementos tão necessários para a harmonia social. Conhecer e seguir os melhores exemplos de luta são contributos indispensáveis para que a escravidão, o preconceito e o jugo dos tiranos sejam, conscientemente, exemplos de tudo o que não queremos para nós, a fim de que não tenhamos mutilado nosso tão legítimo sonho de liberdade. Que a liberdade resida em nós, homens e mulheres, prazerosa e ousadamente.
Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Conceição Evaristo. Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).
Klítia Cimene